sexta-feira, 27 de novembro de 2015

As pessoas de quem gosto #4


Tenho um fraquinho por velhinhas - termo que uso com o maior dos carinhos.

Uma das minhas filosofias de vida é ter dois minutos de atenção e disponibilidade para com os mais velhos. Acredito que devemos respeitar os idosos, e esta é a minha forma de transformar o meu pensamento em acção.
Uns minutos de conversa, acompanhados de um sorriso pode não ser muito, e efectivamente não é, mas faço por ter em mente que desconheço a vida daquela pessoa. Que em alguns dos casos o nosso encontro, ainda que breve, pode muito bem ser a primeira interação que aquela pessoa teve durante o dia, e por isso acho tão importante fazê-lo.

Confesso que o termo obrigação se aplica em alguns dos casos. É óbvio que o faço também por gosto e, não só porque acho correcto. Mas confesso que o gosto decresce e a noção de sentido de dever aumenta com aquelas pessoas que são mais negativas e lamuriosas.

Felizmente nem sempre é assim. Há pessoas com quem é privilégio partilhar o mesmo oxigénio, que dão gosto conviver, que são uma inspiração não importa a idade que tenhamos.
Duas dessas pessoas são a Dona M. e a Dona Z..

Ambas são quase octogenárias, viúvas, independentes e, independentemente dos seus problemas de saúde e outros, são sempre uma lufada de ar fresco onde quer que entrem, tal é a sua boa disposição.

Todos os dias, acompanhada pelo Kiko, passo pela rua da D. M..
Numa destas manhãs, M. sai de casa, no seu conjunto de tweed que lhe assenta de forma escorreita e, com o sorriso costumeiro emoldurado pelo penteado níveo e impecável, atravessa a rua para nos vir cumprimentar.
Conta-me que vai ao médico, mas despacha rapidamente o assunto com um "tem que ser, é a vida!", como se essa coisa das maleitas nem fosse digna o suficiente para servir de tema às conversas.
Prefere sacar de dentro da mala um volume impressionante de fotografias, através das quais me dá a conhecer a família. Em algumas das fotos mais antigas ri dos penteados e das modas do passado.
"Chegou a conhecer o meu marido?" - pergunta-me, com talvez uma ponta de saudosismo, mas sem qualquer névoa de amargura.
Abre um saco e mostra-me um casaquinho que tricotou para mais um recém-nascido. Modelito único, que lhe ensinou a sogra, que nas últimas três décadas serviu de molde para um abismal número de agasalhos saídos das suas mãos.
Fala e mexe-se com desembaraço e vivacidade. Pergunta-me se sei a sua idade, e desafia-me a arriscar um número. Eu aposto um pouco baixo, e erro. É uma cordialidade, um "cavalheirismo" que mesmo sendo mulher, me sinto na obrigação de ter, especialmente com as senhoras mais maturas.
Elogio-lhe a elegância e a jovialidade, e sou totalmente honesta no que digo: M. sai-se com um "tem que ser, filha, tem que ser!", antes de se despedir e descer a rua, sorrindo.



Partilho a mesma rua com a Dona Z.
Quando me vê, aproxima-se para me dar dois beijinhos que eu retribuo com gosto. Fala-me dos passatempos, dos passeios e das férias além-fronteiras, da família, do quotidiano. Gabo-lhe ser tão activa e extrovertida.
Elogia os vizinhos. Denuncia um pouco de solidão quando suspira que estão todos ocupados a trabalhar, "pois tem que ser, não é?!".

Partilha com a D. M. o sorriso aberto, bonito, e o cabelo níveo, sempre bem arranjado.

Cruzamo-nos num dos corredores do supermercado e eu ajudo-a com os cupões promocionais, aqueles que dão descontos nos produtos X ou Y. Seguimos caminhos diferentes.
Voltamo-nos a encontrar na caixa. Deixo passar a pessoa que está atrás de mim para que estejamos juntas, e eu a possa ajudar se for necessário.
Pergunto-lhe se vai a pé para casa, tal como eu: "Vou, vou. Trouxe o meu carrinho e tudo."
Arremato oferecendo-lhe companhia para o caminho - "Com companhia custa menos!", pisco-lhe o olho.
Deixamos passar mais uma pessoa à frente e eu ajudo-a a colocar as compras no tapete rolante.
Aponta para duas caixas de chocolates. Gosta de ter sempre chocolates para oferecer a alguém, nem que seja às crianças do prédio ou a qualquer vizinho nas ocasiões em que a ajudam a levar as compras escadas acima.

Guardo-lhe as compras no carrinho e seguimos, ela com o seu trolley, eu com os meus sacos.

Alguns minutos depois chegamos e eu que não me esqueci da nossa conversa, ofereço-me para subir com o trolley. À porta de casa, insiste e acaba assim por me forçar a entrar.
 "Obrigada. Mas só por um par de minutos", digo, lembrando-a que deixei os meus sacos no átrio.  Mostra-me a casa e os trabalhos de tricot, conversamos mais um pouco.

Quando nos despedimos e começo a descer o primeiro lance de escadas, chama-me. Quer-me oferecer uma caixa de chocolates.
Não a quero ofender, mas não quero aceitar. Tão simplesmente porque o que fiz, fiz por gosto, porque quis, e em nada perdi. Não foi um favor, nem preciso de compensação por tal.

Digo-lhe que os guarde para as crianças. Z. insiste e eu replico que se me quer dar alguma coisa que me dê mais dois beijinhos. Ri-se e beija-me. E eu despeço-me galgando já as escadas.









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