sexta-feira, 6 de julho de 2018

coisas de pensar: Do bater com a cabeça, ou como às vezes penso em Henrique VIII


Henrique VIII é uma figura que fez por merecer o seu lugar na História por todos os epítetos menos simpáticos que se possam lembrar. Afinal Henrique sempre foi, entre muitas outras coisas, o grande decapitador de esposas.
Desconfio até que, Lewis Carroll, o autor de "Alice no País das Maravilhas", se tenha inspirado no mesmo aquando do desenvolvimento da Rainha de Copas. Quem mais serviria de inspiração para uma personagem que, por tudo e por nada, era "off with their heads"?!

Embora sem provas que o comprovem de forma indubitável, existe a crença que uma das melodias mais perfeitas de sempre - "Greensleeves" - é da autoria de Henrique, deste mesmo Henrique - o decapitador de esposas. Tal não me deveria surpreender, afinal a história do mundo está repleto de beleza que nasceu da mente e das mãos de humanos verdadeiramente escroques e repugnantes. O verdadeiro enigma residirá, com certeza, na nossa dualidade. Mas isso fica para outras núpcias.
Mesmo assim, ficou sempre instalada a "minhoquinha".

Há semanas vi um documentário sobre Hampton Court - uma das muitas residências reais inglesas, e uma das favoritas deste monarca a da sua extensa corte.
Se é a qualidade da arquitectura e localização que dá a qualquer lugar a sua beleza, são as histórias das gentes que por lá passaram que lhe conferem acrescido interesse.

Sendo a mesma pessoa, é justo dizer que existiram dois Henriques a habitar Hampton Court, que não poderiam ser mais distintos entre si.
O jovem rei, embora tivesse um real feitio de merda, e por tal todos sabiam que a primeira regra de conduta era não despertar a ira real, causava verdadeiro espanto a todos os que rodeavam, independentemente da sua classe: era anormalmente alto e bem constituído, formoso e bonito, (e pelos vistos à séria, por incrível que pareça nada daqueles traços que denunciam que as criaturas são fruto de procriação num círculo demasiado fechado há gerações, como costumavam fazer com os humanos de raça para manter o pedigree),  atlético, artístico, bon vivant, e incrivelmente afável e sério na preocupação em desempenhar um bom papel.
Era tão bom quanto os melhores em muitos dos seus interesses: houve quem dissesse que não havia nada mais belo no mundo do que ver o rei jogar ténis. Vivia uma história de amor digna de um conto de fadas com a sua primeira mulher, Catarina.

O jovem, como muitos dos jovens de hoje e de qualquer época, gostava de praticar desportos radicais. Naquela época creio que não haveria nada mais radical que as justas. E embora Henrique tivesse bastante jeito e experiência, um dia a coisa correu verdadeiramente mal: uma lança perfurou-lhe a perna e caiu do cavalo, batendo violentamente com a cabeça. Catarina, que assistia, passou mal e teve um aborto espontâneo.
O rei ficou acamado, entre a vida e a morte. O Henrique que sobreviveu a este acidente não mais seria o jovem e galante rei, mas o déspota, obeso mórbido, sem cuidados de higiene pessoal, cruel e boçal figura que adorna os livros de História. Há quem diga hoje em dia que a pancada na cabeça foi tão brutal que seria mais que suficiente para levar a uma alteração de personalidade, na hipótese de ter sido na zona do lobo frontal, região que também gere a nossa personalidade. Junte-se o ferimento na perna, causado pela lança: uma ferida infectada, purulenta, de cheiro nauseabundo, que lhe toldaria os movimentos e lhe causaria dores alucinantes para o resto da vida.

A história de Henrique lembra-me que embora seja um verdadeiro cliché aproveitarmos todas as ocasiões possíveis para desejarmos "muita saúde" a tudo e todos, a nós e a quem queremos bem, ao colocarmos o "haja saúde" como o primeiro estandarte de todas as listas de prioridades e desejos, não o faz menos importante, meritório, verdadeiro e até profundo.
É que não há nada tão transformador na vida de alguém quanto os episódios relacionados com saúde, seja sobre a sua perda ou recuperação. Seja lá quem formos, acredito que qualquer um de nós quando acometido por algo suficientemente invasivo, está a um passo de se tornar uma personificação do mal que o atormenta. Tal como Henrique. Tal como as histórias de leões comedores de homens que afinal padeciam de uma dor de dentes.

Portanto, haja saúde, pelo bem de todas as cabeças.

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