sexta-feira, 24 de abril de 2015
coisas de pensar: Os benefícios salariais de uma dona de casa.
Tornar-me dona de casa foi, acima de tudo, uma espécie de viagem espiritual.
Eu explico:
Um dos principais motivos que me levou a enveredar por determinado curso superior foi a perspectiva de um bom salário. A arrogância, a imaturidade e sobretudo a santa ingenuidade dos meus 19 anos fizeram, que ainda caloira, já tivesse uma ideia fixa de como seria a minha vida, quase até ao final dos meus dias.
Iria trabalhar muito, imenso, que nem uma desalmada. Cumprir prazos extraordinariamente curtos. Fazer quantas directas fossem necessárias. Teria café a correr-me nas veias. Seria um burro de carga, um cavalo de batalha. Iria correr mundo em trabalho, do Japão aos Estados Unidos, e a dezenas de outros destinos. Voltaria mais ou menos fluente em não sei quantas línguas, com disciplina de samurai, samba no pé e um chapéu de cowboy.
Construiria uma reputação imaculada, daquelas que fazem com que os melhores empregadores enviem headhunters para nos acossar com mais e melhores propostas.
Seria apaixonada pelo meu trabalho, mesmo que me tivesse que forçar a tal, que tivesse que me contentar com orgasmos laborais fingidos - se serviu a Fernando Pessoa, seria mais que suficiente para mim, era o mantra de ordem.
Ter a noção que talvez não sobrasse nem tempo nem energia para nada mais que não trabalho. Alegrar-me com o facto de se trabalhar em dupla. Com sorte, uma das melhores amigas seria a outra metade do binómio, ou alguém capaz de o ser, e a energia emocional positiva da relação bastar-nos-ia, pelo menos por uns tempos.
Sempre com a esperança que todo o esforço seria compensado, como numa das leis de Newton. Para começar, um leão de Cannes seria capaz de tocar, certeiro, no "ponto g" profissional.
Em troca queria também e, não esperava nada menos que reconhecimento e uma pipa de massa.
Ênfase na pipa de massa. Sempre me horrorizaram os salários de três dígitos. Acho desumano e uma imensa falta de respeito que uma pessoa, uma qualquer pessoa em qualquer área, viva para trabalhar por um salário que somente dá para sobreviver, e quantas vezes à justa. Que o grosso da colheita que todos semearam vá toda para um "fat cat".
Queria prosperar o suficiente para não só ter construído uma vida com um alicerce confortável para mim mesma, como para poder mimar os meus pais. Imaginava-me a oferecer-lhes férias em cruzeiros de luxo, por exemplo. Acima de tudo, a cumprir com distinção a visão que tenho do papel de filha, garantindo-lhes uma velhice com assistência e cuidados de primeira categoria, do melhor que o dinheiro pode comprar. Porque eles merecem. Os nossos merecem sempre o melhor.
Haver acumulado o suficiente para bater nos entas e sair disparada de cena, feita Cinderela. Reinvidicar tempo para a auto-descoberta, para o ócio e toda uma bucket list.
Seguiria o exemplo de muitos dos meus professores, e também eu daria uma meia dúzia de aulas por semana num par de universidades, um ou outro seminário, três ou quatro workshops e colóquios. Pontualmente, uma ou outra participação como consultora - paga pelas empresas, em regime pro bono para as causas do coração.
Aos 19 anos, por arrogância, imaturidade e sobretudo ingenuidade, queremos tudo. O mundo e mais além. O mundo é uma maçã e parece estar ali à mão, pronta para colher. É natural e salutar. Que mal estaria o Mundo e a Humanidade se os jovens não tivessem uma energia desmedida, revelada também nos seus sonhos e vontades. Mesmo que essas visões nos pareçam, a nós adultos, estapafúrdias e nos façam revirar os olhos como se fosse código para "Pois sim! Deve ser deve!".
E eu que dava ênfase à pipa de massa e ao reconhecimento, lidei com a minha dose de "fat cats", auferi descontentes salários de três dígitos, até que me o meu corpo e a minha psique se rebelaram e se recusaram a mais do mesmo. Então, fui de certa forma Cinderela, salva das empresas madrastas, para reinar em castelo próprio. Metade de um binómio.
"Estranha-se, depois entranha-se."
Há uma primeira fase em que se estranha. Que se sente a falta de algumas rotinas laborais, do cheque ao final do mês, como se se tratasse de um membro amputado. Afinal, somos programados desde o início das nossas vidas para acreditar que não há vida que não seja dedicada ao trabalho, que somos o que fazemos, que valemos o que ganhamos.
Talvez por isso sejamos algo misóginos, injustos e usemos até de um tom paternalista quando nos referimos a donas de casa, corriqueiramente conhecidas como domésticas, como as aves de capoeira, que erradamente, por serem das mais humildes das aves, são consideradas estúpidas.
Ser dona de casa é uma carreira como qualquer outra, com rotinas, prazos, tarefas. Também há dias menos bons, "segundas-feiras", como em qualquer escritório. E dias verdadeiramente bons, acompanhados da sensação de cumprimento, de superação, de sucesso.
De todas as milhentas hipóteses de carreira em que me tentei imaginar, aquando miúda, creio que de todas, esta pode bem ser a que possibilita vivenciar-se algo mais próximo ao verdadeiro conceito de liberdade. É uma excelente sensação de poder pessoal decidir o que fazer, como e quando.
Parte do meu salário recebo-o em raios de sol nas esplanadas, horas de sono, uma vida livre de despertadores, trânsito e greves dos transportes públicos, de tempo, que longe de chegar para tudo - por incrível que possa parecer! - dá para muito, inclusive para ser e aprender mais.
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