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segunda-feira, 21 de maio de 2018
Lições: Dar e receber, ou o episódio da miúda possuída.
Quando era miúda, naquelas idades em que parecemos passar por um surto de crescimento a cada estação do ano, a minha mãe tinha o hábito de dar às vizinhas, amigas, colegas e amigas das amigas a roupa que já não me servia.
A minha mãe levava este hábito muito a sério: nada saía das suas mãos sem estar impecavelmente lavado, engomado, e em óptimas condições de conservação.
Qualquer peça que não satisfizesse o seu critério e merecesse o seu "selo de aprovação" tinha o destino traçado como "roupa de andar por casa" ou acabaria transformada em trapos para limpeza.
Confesso que sempre achei que a minha mãe era mais maçadora, repressiva e exigente que qualquer outra mãe que conhecesse, e que era tremendamente injusto que no meio de um mundo de gente só eu é que tinha que aturar constantes "não te sujes, não estragues, não te sentes aí, não te encostes à parede que...".
Por mais que me dessem cabo dos nervos fui aguentando as suas manias, porque creio que já em criança tinha a maturidade, a empatia e o sentido de observação aguçados o suficiente para entender por mim, que tendo os meus pais crescido numa época e num contexto em que não havia fartura, em que o desperdício e a futilidade eram impensáveis e nem faziam parte do léxico do quotidiano, a reacção desenvolvida havia sido um respeito acrescido pelas coisas, e pelo esforço, tempo e energia que são necessários para as obter.
Que estragar por estragar, dar mau uso, é uma desvalorização de tudo isso, e um sinal de desrespeito. Que fazer chegar a terceiros as coisas que já não nos servem mas que soubemos estimar, é um sinal de grande consideração, pelo próprio objecto pois estamos a prolongar-lhe a vida, e pela pessoa, que assim não precisa de gastar dos seus recursos para o comprar.
E porque hoje vivemos na maior era de futilidade e desperdício de sempre, posso acrescentar que a forma de pensar da minha mãe era também muito à frente ambientalmente.
A tudo isto junte-se que o dinheiro não nasce nas árvores, custa a ganhar, e portanto só vale a pena gastar em roupas de boa qualidade, como eram as da Cenoura para as crianças na minha época, se estas forem educadas a não transformar as vestimentas em trapos irreparáveis após meia dúzia de usos.
Voltemos ao hábito da minha mãe de dar roupa, e à única vez que me passei dos carretos por causa disso.
Todos os armários são iguais. Acho que não há ninguém neste mundo, mesmo as crianças, que não tenha a roupa dividida em categorias. Há a roupa usada para brincar e sujar de óleo de bicicleta e relva, a roupa para ir à escola, e uma categoria "vip", para traparia realmente importante e boa, aquela usada em idas ao fotógrafo, reuniões familiares formais, festas de Natal no emprego dos pais e ocasiões especiais de toda a espécie.
Um dos meus conjuntos favoritos era a determinada altura uma saia e camisola encarnadas, com pequenas flores bordadas na gola. Para tristeza minha era um dos conjuntos para ocasiões especiais, que não podia usar sempre que me desse na gana, e quando deixou de me servir estava praticamente novo.
Uma tarde chego da escola e à entrada do prédio está a miúda da porta ao lado com um conjunto, - epá, que grande coincidência! - igualzinho ao meu.
Solto um olá e digo-lhe que tenho uma roupa igual. Recordo-me de estranhar o seu comportamento atípico. A raça da miúda parecia possuída pelo demo: sentava-se na soleira do prédio e arrastava o rabo de um lado para o outro como se se estivesse a sujar de propósito, levantava-se e esfregava-se nas paredes do prédio. Sempre a olhar para mim e a sorrir como uma daquelas crianças arrepiantes dos filmes de terror.
"Vais estragar a tua roupa! A tua mãe não se zanga contigo por te sujares assim?! Olha que se fosse a minha..."
E o ar de prazer aumentava, o que me fez finalmente perceber: a estúpida da miúda estava contente pelo simples motivo que a roupa que ela estava a estragar era a minha!
Tornou-se claro para mim: há pessoas que têm uma inveja aos filhos únicos, que nos guardam um rancor, uma dor de corno inacreditável, porque na sua mente criaram a irreal fantasia que a ausência de irmãos significa a ausência de todos os problemas e a satisfação de todos os desejos. Que de cada vez que os seus pais lhes negam algo, há uma parte daquelas cabecinhas que se focam nos filhos únicos que conhecem e embora não façam mínima ideia de como é a realidade, (e honestamente nem me parece que queiram saber, afinal tem de haver alguém que sirva como alvo para toda a sua frustração), pensam algo como "Fulano e Sicrana têm sempre tudo o que querem. Eu tenho que partilhar e nunca tenho tudo o que quero. Odeio-os."
Disfarcei o meu desagrado e fui para casa. Corri para o armário e confirmei que aquela roupa era realmente a minha.
Fui discutir com a minha mãe. Estava furiosa: de que valia a pena todos os cuidados, todas as restrições, a enorme lista de "não faças, não estragues" se é para as minhas coisas irem parar a pessoas assim? Que nunca lhes desse mais nada que fosse meu. Quando precisasse de se desfazer de coisas minhas, que as vendesse ou transformasse em trapos, que as deixasse numa qualquer organização para pessoas carenciadas, que é melhor destino que irem parar às mãos de quem não sabe dar valor às coisas e ao gesto. Não merecem mais que um balde de merda!
Disse a asneira e tudo! Estava furibunda! Sentia-me desrespeitada.
A minha mãe também não gostou. A minha memória é péssima, mas acho que a sua rede de pessoas com quem partilhava coisas ficou mais curta desde esse dia.
A miúda da porta do lado hoje é tão miúda quanto eu, e muito provavelmente não se lembrará da figura que fez. Já eu considero que o episódio foi uma excelente lição sobre natureza humana: que o acto de dar nem sempre é uma obrigação inegável, assim como receber não é um direito inalienável - é um merecimento.
terça-feira, 29 de agosto de 2017
Lições da minha infância: A freira, os doces de alcaçuz, e a lição aprendida ao contrário.
Sempre que o meu pai regressava a casa do seu trabalho além-fronteiras, aproveitava a espera no aeroporto para se abastecer nas lojas duty free.
Se era obviamente uma ocasião feliz ter o meu pai em casa, saber que ele regressava com um carregamento de chocolates e outras coisas boas era ouro sobre azul.
Isto é mesmo o mundo através dos olhos de uma criança de dez anos.
Numa dessas ocasiões, houve uma novidade que me despertou mais a atenção que qualquer outra coisa: um saco de doces de alcaçuz, rolinhos numa miríade de cores gulosas com um recheio escuro.
Mal vi o rótulo reconheci o termo "liquorice" de o haver ouvido na tv, o que aumentou o meu interesse. Afinal ia experimentar algo de outra cultura, e isto há quase trinta anos não havia a oferta que temos hoje, em que em quase qualquer loja se encontra quase tudo de todo o lado.
Experimentei um, dois, e talvez o terceiro, e concluí que infelizmente alcaçuz não era para o meu palato. Os meus pais foram da mesma opinião.
Pensei que poderia haver quem gostasse. Que lá por eu não gostar, não significava que não fosse bom. Então lembrei-me, na ingenuidade própria da minha idade e na melhor das intenções, de levar aquele saco de doces para partilhar com a minha turma. Achei que seria positivo os meus colegas experimentarem algo de novo, quer gostassem ou não. Se pelo menos um deles gostasse do sabor era missão cumprida, bem melhor que os deitar fora só por não sermos apreciadores lá em casa.
Este episódio, historieta tão pequenina, desinteressante e irrelevante, ficou-me somente na memória por ter dado mote a duas lições: a que me tentaram ensinar, e a que realmente aprendi.
Confrontada pela rambóia de vinte e tal crianças a fazerem caretas com bocas cheias de alcaçuz, a Irmã achou por bem transmitir-me a lição que gesto bonito, assim mesmo bonito e de valor, é dar aos outros aquilo que mais gostamos, aquilo que consideramos que temos de melhor.
Ouvi caladinha. Abri os ouvidos, mas os dois, que é para aquilo poder entrar a cem e sair a mil.
Em primeiro lugar, porque claro que não gostei da desvalorização da minha boa intenção. Não esperava palminhas, mas um "olha, não gostei, mas obrigada na mesma" fica sempre bem.
Em segundo, porque mesmo só com dez anos, achei que a mensagem que me tentava incutir era do mais hipócrita que há.
Que era mesquinho exigirem-me, de certa forma, que eu partilhasse as minhas coisas favoritas, com um grupo de pessoas que nunca trouxe nada para partilhar.
Que ninguém, por exemplo, compra roupa nova e a doa, ficando a servir-se daquela que já tinha por casa, e que já nem lhe serve.
A lição que apreendi resume-se no velho adágio "nenhuma boa acção fica sem punição". Nunca mais levei nada para partilhar.
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