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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

crónicas do condomínio: Declaração de amor a um orçamentista



Um dos projectos a serem executados este ano sob a minha alçada será a instalação de caixas de correio exteriores.

O meu sistema é simples: googlo por empresas que forneçam os serviços que procuro por proximidade geográfica, e contacto primeiramente aquelas cujo site me agrada mais. Como devem imaginar não me refiro a um "concurso de beleza", mas à qualidade e quantidade da informação.

No meu contacto telefónico pergunto se realizam tal serviço, informo sobre a minha localização e pergunto sobre a disponibilidade e interesse. Enfim, o básico.

Pois bem, para esta empreitada das caixas de correio contactei uma empresa. Como prometido, passaram mesmo a informação para o orçamentista, e este não levou muitos dias a ligar-me para agendarmos um encontro.

No dia marcado, passavam dez minutos, se tanto, da hora marcada quando o senhor me ligou a pedir indicações, pois a rua que lhe indiquei não aparecia referenciada no seu gps.
Chegou pouco depois.
Em menos de nada saca da fita métrica, faz as medições, avança com as especificações do produto, faz-me perguntas, responde às minhas, abre uma pasta onde lá estava uma ficha com os meus dados onde desenha um croqui, acrescenta o meu mail. Diz-me que me envia o orçamento no dia seguinte. Fala da importância da pontualidade, dos mais de 20 anos de experiência. Exala brio e profissionalismo, e eu aceno que sim, senhor é assim mesmo, que gosto de gente assim.

No dia seguinte, lá estava o orçamento. E um como deve ser.

Para contrabalançar a grande sorte de ter acertado à primeira numa empresa séria, onde não me dizem que o preço "com factura" é X e "sem factura" é W, onde cumprem horários e compromissos, o comercial da empresa da extintores tinha que falhar, não é?

Contactou-me no mesmo dia que o orçamentista da empresa de caixilharia. Finalmente. Para isso acontecer, e após ter ficado à espera que me contactassem durante duas semanas, foi preciso um segundo telefonema da minha parte.
Então lá telefonou e agendámos. Nunca apareceu nem se dignou a telefonar, a justificar-se. Que é o mínimo que as pessoas decentes fazem. Se as pessoas quiserem ser profissionais para além de decentes, telefonam mal sabem que se vão atrasar, para pedir desculpa pelo incómodo e dar hipótese ao cliente de optar pelo reagendamento do compromisso.

Não liguei uma terceira vez.

Mas contactei hoje uma outra empresa, que aquela foi para a lista negra.

A aventura continua.

Uma das minhas vozinhas interiores anda aos berros com esta situação. E o que diz ela?
"Fod*-se! É só a merda de um extintor! Quanto mais trabalho vai dar a merda de um extintor, porra?!"

segunda-feira, 21 de julho de 2014

E com duas palavrinhas apenas...



Já trabalhei numa sapataria.


Por norma, quando apareciam clientes "estrangeiros" as minhas colegas iam-me chamar.


Numa dessas ocasiões dei por mim diante de uma família, com quem comunicar parecia uma missão impossível.


Tentei os óbvios "do you speak english", "parlez vous français", "habla español", "parla italiano".
Sem sucesso.
Atirei-me com medo ao "sprechen sie deutsch", (sou a nódoa das nódoas em alemão).
Nada.


Ouvi-os a falar entre si, e pareceram-me de leste.


Eu que não sei falar russo, atirei na mesma expressão todas as palavrinhas russas que me ocorreram: "russki gorbatchev vodka perestroika?"


Sucesso! Efusiva demonstração de alegria por parte dos clientes!


Gosto muito de uma das características do povo português: somos desenrascados como poucos.


E foi assim que usando só "da" e "nyet", (sim e não), apontando para os sapatos, usando gestos para "pequeno" e "grande", e o polegar para cima usado para indicar que era mesmo aquele par ou perguntar se estava ok, conseguimos comunicar.













sábado, 15 de março de 2014

Lembrança de Apolo em chamas ou, um argumento para a liberalização das drogas





Acho que não existe ninguém no mundo que não tenha perdido alguém para o buraco negro das drogas, seja um familiar, amigo, ou simplesmente um conhecido.


Durante a minha adolescência, morreram três pessoas do meu círculo alargado de amigos. Perderam-se definitivamente, sem retrocesso.
Acho que o mesmo se pode dizer daqueles que sobreviveram: perderam-se definitivamente, sem retrocesso. São uma sombra do que foram, envergam o fato pesado das marcas da dependência. Marcas indeléveis, visíveis no corpo e na psique, mesmo após o acto de enorme coragem de vencer a dependência.
São casos verdadeiramente raros aqueles que têm a benção de uma segunda oportunidade, de se apresentar ao mundo renovados, de ter outras realidades como cartão de visita, sem que a aparência os traia, ou que troquem velhos vícios por outros.




Também nós - todos aqueles que assistimos ao desperdício da vida - ficámos com uma cicatriz indelével, marca das suas histórias.


Igualmente quando penso neste tema, lembro-me de um rapaz, de quem nunca soube o nome.




Estaríamos nos anos 90. Eu, uma adolescente, ia com os meus pais em mais uma viagem até à casa dos meus avós.
No mesmo trajecto de todas as vezes, num mesmo semáforo que fechava sempre que lá passávamos, algures num ponto encardido de Lisboa onde a primeira reacção há-de ser sempre fechar os vidros e trancar o carro, lá estava ele: um jovem louro, com cabelo à Kurt Cobain, lindo, cheio de vigor, sorridente, a irradiar vida e luz e cor naquele ponto lúgubre da cidade, onde quem lá pára não é por bons motivos. Pululava por entre as várias viaturas, paradas no sinal vermelho, como se estar na rua a limpar os vidros dos carros em troca de alguns trocos fosse a melhor coisa do mundo.


Nem há palavras para como aquela contradição teve impacto em nós. A memória é volátil, e já lá vão uns bons anos, mas lembro-me do meu pai, quando abordado por aquele jovem, ter-lhe oferecido ajuda.
O rapaz sorria, e educadamente recusou. O meu pai despediu-se com um "tem cuidado, cuida-te", e com o sinal verde, fomos os três de coração apertado.


As viagens à casa dos meus avós ocorriam, mais ou menos, de dois em dois meses. Em todas as viagens víamos aquele jovem, no mesmo semáforo. Num período de cerca de um ano, talvez um pouco mais, assistimos à sua mudança: gradualmente foi-se a luz, a alegria, a vivacidade, a beleza. Em cada viagem, aquele jovem cada vez mais magro, macilento, cinzento, deixava de ser Apolo.


A última vez que o vimos, o jovem Apolo parecia um cadáver, esquelético como os protagonistas das fotos ilustrativas dos horrores do terceiro mundo, tinha imensas dificuldades em mover-se e parecia quase alheio ao que o rodeava.


Na viagem seguinte, e em todas as outras após essa, não o vimos mais.


Nunca deixarei de o lembrar, e de sentir tristeza com o seu destino, embora fosse um estranho. É impossível ficar indiferente ao desperdício da vida.




É também por ele que defendo a liberalização das drogas.
Se não é possível erradicar de vez o tráfico e o consumo das mesmas, parece-me preferível a existência de espaços assépticos e controlados pelo Estado, semelhantes a enfermarias, especificamente criados para serem o único local onde é permitido o consumo dessas substâncias. Para mim, antes assim do que a degradação de espaços públicos, de zonas que se transformam em locais chave de tráfico e consumo.
Defendo um cenário onde as drogas se vendam como um medicamento - melhor que seja o Estado a lucrar com a venda das mesmas do que os traficantes, podendo investir esses proveitos fiscais na reabilitação e tratamento de quem procure um novo rumo.
Talvez assim não existissem buracos negros espalhados pela cidade que sugam a vida de quem neles se pára, nem Apolos em semáforos.














sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Você abusou...





Há anos, tive que estar em frente a uma câmara de vídeo, a falar sobre o que mais me irritava. Talvez fosse efeito do close-up, mas senti-me tão pouco à-vontade, que respondi algo sem nexo.
Hoje diria que, se me quiserem elevar à quinta potência da exaltação, basta demonstrarem falta de bom senso, e abusarem da boa vontade.


São princípios que me foram incutidos pelos meus pais de tal forma que se tornaram numa espécie de movimento reflexo, automático.


Para que percebam melhor, um exemplo:


Quando entrei para o liceu, o pai de uma amiga, que tomava o mesmo caminho para o emprego, tinha disponibilidade para levar a filha à escola de manhã. Havendo espaço no carro, teve a gentileza de extender a cortesia a mais miúdas. Entre elas, eu.
Os meus pais agradeceram-lhe e deixaram bem claro que se porventura um dia me atrasasse a chegar ao ponto de encontro, não deveriam esperar por mim. Que "amigo não empata amigo". Que chegar atempadamente e não pesar a quem nos faz uma gentileza é um dever que não deve ser descurado. Que quem abusa da boa vontade não é merecedor de favores.
Por acaso, eram eles que se atrasavam. Mas lá está, segundo os meus pais, isso não interessa nada, porque devemos ser cumpridores, independentemente do que os outros façam.
E que como favores nunca serão obrigações, se assim preferisse, a Rodoviária Nacional nunca deixava de ser uma belíssima hipótese.


Isto ilustra o ambiente em que cresci. Fez de mim uma pessoa tão imperfeita quanto outra qualquer, mas quiçá, um bocadinho mais consciente.




Ora, há dias, poucos minutos depois de acordar, tocam à porta. Era um vizinho.
Com os sentidos ainda turvos, qualquer conversa me soa a  "blá blá blá whiskas saquetas".
Fui conseguindo apanhar alguns vocábulos como: carro... reboque... viatura de substituição... coisa rápida... blá blá blá... um favor.
Com muito custo, e a pensar que não percebo nada de mecânica, inquiri: "favor?".
"Sim... blá blá blá... crianças". Aí foi como se tivesse tomado um primeiro café. "Quê? Olhar pelas crianças? Eu?! Quando?!"
"Agora." - disse ele. E eu posso jurar que soltei um guinchinho. Não me ter saído um "fo...go!" ou um "c'um carago!"...


Reticente, argumentei que a minha experiência com crianças era nula, (ao longo da minha vida vi amigas a trocarem fraldas, prepararem biberões e noutros rituais com as suas crias, uma dúzia de vezes, o que faz de mim alguém tão entendida na matéria como em física quântica), que nunca tinha mudado uma fralda, que era uma enorme responsabilidade. E pensei para com os botões do meu pijama "demasiada responsabilidade, para se entregar a quem não se tem intimidade para além da usual troca de cumprimentos quando nos cruzamos".


Não desarmaram, e num espaço de dez minutos tinha uma mãe a deixar-me duas crianças, um menino de 1 ano e uma menina de 5, em casa.
Sorri-lhes, ainda atordoada, e pensei para mim mesma "respira fundo, vai tudo correr bem, afinal é só por um par de horas".


Começámos por cumprir o meu ritual de ir tomar o pequeno-almoço ao sítio do costume. Sim, portei-me bem e pedi um ucal e uma sandes mista para a miúda, mesmo após a insistência desta sobre como preferiria um gelado ou chocolates.
Já em casa, meti-os a ver um daqueles canais de tv infantis. Fui buscar papel, lápis de cor e de cera.
Tudo tranquilo. Até que...


... as horas começaram a passar, as coisas começaram a fazer falta, e dentro das mochilinhas que tinham vindo com os miúdos não havia rigorosamente nada mais do que fraldas e toalhetes!


- "O que é que o mano papa?" - "Leite no biberão."
- "Está onde? Na mochila?" - "Não. Está em casa."


O primeiro de muitos momentos de apoplexia nervosa.
Valeu-nos a experiência de vários amigos, que foram respondendo às minhas dúvidas através do facebook, e a carne picada que tinha no frigorifico, pensada para o jantar dessa noite, acompanhada com arroz branco, e creme de legumes. Por precaução, com pouco tempero.
Tudo servido em pratos de sopa e colheres para evitar acidentes, e uma oração minha pedindo a quem me ouvisse que nenhum dos petizes tivesse alguma alergia a algum dos ingredientes.


Na hora de mudar a fralda, faltava o creme para passar no rabiosque. E onde estava este? Em casa, pois claro!




- "Tens algum telemóvel para ligar à mãe?" - "Sim. Em casa."


Pois, que entre o meu estado sonolento e surpreendida, e a pressa da mãezinha de aproveitar o ocorrido para ir laurear a pevide com a cara metade e sem putos atrás, (que eu entendo, a sério que entendo! Mas há maneiras mais correctas de agir!), nem trocámos contactos.


O périplo durou 7 horas. Teria durado mais certamente se, por obra do acaso, não encontrasse quem me desse o número deles.


- "Daqui fala ... Como é?! Já viram as horas?!"
- "Ah... Olá... Já não demoramos muito, ainda temos de..."
- "Pois, isso não me interessa. Não estava preparada para ficar com os miúdos tantas horas. Tenho coisas para fazer. Quanto tempo demoram?"
- "Já só falta blá blá blá... 40 minutos."
- "40 minutos? Certo. Então, prestem atenção, os 40 minutos começaram a contar agora."


Desliguei.


Apareceram a horas. Os miúdos estavam cobertos de migalhas do lanche, sorridentes. É uma imagem gira ver um miúdo de 1 ano a rir-se com uma bolacha em cada mão, ou apanhados a pintar a cara com lápis de cera. Tive direito a abraços e beijinhos. Vários durante o dia, que retribui e soube-me bem.
A experiência com eles foi boa, teria sido exponencialmente melhor se não fossem os pais.
As atitudes próprias de quem quer agarrar o braço e o corpo todo a quem oferece uma mão.
Talvez o problema seja também meu, porque me abespinho com essas coisas, fico ofendida e olho para as pessoas com outros olhos.
É mais forte do que eu deduzir que quem age assim, fá-lo em muitos outros contextos.




O casal agradeceu, diversas vezes. Mas não colocou nenhuma questão. Iniciei eu a vomitar o relatório, o que comeram, quando, quem dormiu a sesta.
Teria ficado bem se me tivessem perguntado se me deviam alguma coisa. Não que tivesse aceite, mas teria gostado de ouvir. É uma questão de educação.


Para além dos agradecimentos, repetidos muitas vezes, só uns comentários sobre como o miúdo em casa não dorme a sesta, que significa que gostaram de ficar comigo. Que deveriam voltar mais vezes!


Não reagi. Quando fechei a porta, fechei todas as portas.
Gastaram todos os cartuchos de boa vontade de uma só vez.


Repeti entredentes, só para mim, que à primeira todos caem, à segunda só cai quem quer.
















quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Cheira-me que 2014 vai ser atarefado...



Sabem aquelas pessoas que ou são atenciosas, amáveis e descontraídas, ou são pragmáticas e eficazes, mas nunca conseguem ser tudo isto em simultâneo?
Tipo um médico que anda de cara fechada e sem passar cartão a nada nem a ninguém que não seja o caso clínico em mãos naquele momento. De quem as pessoas se queixam da pose austera, caústica até, e que a resposta que lhe sai é: "prefere que lhe segure na mãozinha e lhe diga palavras amáveis, ou que me concentre no meu trabalho?"

Pois sou assim.

2013 foi o ano em que me tentei descontrair ao máximo. Fui avestruz, adiei, não fiz, não quis saber. Tentei evitar ao máximo as preocupações, muitas vezes através de uma atitude de não é comigo, há mais gente no mundo, desenmerdem-se, não estou cá, façam de conta que não existo.

Não foi tão fácil como parece. Sempre me foi difícil não controlar, talvez porque ao longo da vida, quando afrouxava um bocado, havia sempre um car#&*$ que não cumpria o seu papel e lixava tudo.

Mas quando finalmente se consegue abraçar a atitude em que se deixa fluir, é tão bom! Mesmo!
Ahhhh, e os momentos de dolce far niente!

 Esplanei muito (o que gosto deste verbo!). Li quantos livros me apeteceram, lamentando apenas que o meu apetite para a leitura não tenha sido tão voraz como já foi. Ouvi boa música, tive bons momentos com boas pessoas. Também tive pachorra para conversas da chacha como é digno das pessoas atenciosas e amáveis.
Reflecti muito, ri-me ainda mais. De mim, de tudo e de todos, inclusivé do que não é politicamente correcto.
 Fiz tudo quanto achei que deveria fazer não dando ouvidos a mais nada nem a ninguém que não fosse a minha consciência.

Fez-me bem. Já consigo respirar fundo e sentar-me com um pose verdadeiramente descontraída, afrouxar os músculos, quando antes parecia que os ombros colavam-se às orelhas e que tudo o resto quedava-se hirto.


Quando 2014 se aproximava senti nas entranhas que este seria um ano de pragmatismo.

Como se tivesse tirado férias e regressasse ao escritório para encontrar a secretária submersa em pilhas de coisas que ninguém fez.

Peço já, de antemão, desculpas pela cara fechada do alter ego pragmático, sarcástico e contundente.
Antes que encarne o bicho de vez, olhem, Bom Ano! Haja saúde!





sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O outrora magnífico palácio da memória...


... está em ruínas.

Dizer isto é render-me às evidências.
Aceitar que a pequena e mui eficiente Miss Lemon, que operava num 2º andar com vista para a Av. do Hipocampo, do "outrora magnífico palácio" mudou-se.
Queixava-se das condições de trabalho. Diz que teve um esgotamento, meteu baixa por tempo indefinido. Mudou-se para a praia do Encéfalo. Parece que os dias são mais prazeirosos por lá...

Volta Miss Lemon! Sinto tanto a tua falta, dessa tua eficiência magistral.

Sinto falta de saber todos os números de telefone e moradas de cor. Os da família, dos amigos, dos colegas, das escolas, dos empregos...
Sabes que demorei semanas para decorar, correctamente, o meu novo número de telemóvel? Que angústia!

Lembras-te quando "o melhor que encomenda" me ligava para o escritório, a dois minutos de se encontrar com um cliente?
Questionava-me sobre o teor de um documento, com perto de 100 páginas. À rasquinha, em cima da hora, porque não leu o que deveria ter lido. Esperava que, à velocidade da luz, lhe indicasse de memória o paradeiro de um ou outro tópico.
E tu, Miss Lemon, vinhas em minha salvação: "página 48 ou 49, mais ou menos a meio" - para me salvares no momento em que a minha boca já se movia para declamar, ao telefone, aos ouvidos do meu empregador, os vários sinónimos de "trambolho".

Desculpa, mas aí erraste, querida Miss Lemon!
Mataste à nascença o que poderia ter sido mais do que um momento de pura poesia.
Teria sido a nossa salvação (tenho a certeza que foi "o melhor que encomenda" que te levou ao esgotamento, à deserção). A nossa carta de alforria!


Soubesse que me poderias abandonar e teria declamado como ninguém, com punjança e bravado:

- Vossa Mercê é um trambolho! Digo,

troço coisa carga acusação arrecova ataque carregação carregamento carrego embaraço fardel fardo ónus pesadume porte responsabilidade sova surra  acanhamento apertura assado atalho atrapalhação atravanco buraco busilis cerimónia cipoal complicação confusão constrangimento contratempo dificuldade durida embargo embondo embrulhada empacho empecilho encrenca enleio enrascada entalação entaladela entrave estorvo imbeleco imbondo impedimento irresoíução labirinto óbice obstáculo osso peia pejo perplexidade perturbação rascada resistência timidez tropeço embrulhos barreira empeço pespego travanca trangalho enfiada !


Tudo por ti, saudosa Miss Lemon!
Pelos muitos serões de estudo a que me poupaste, à facilidade de fechar os olhos e ver recriado, em versão cinematográfica a correr por trás das pálpebras, a tal aula em que se falou de tal, o tal livro, o tal filme.
Pelos muitos anos que passei, segura de ti, a pensar que agendas eram para velhos com problemas de memória.


Volta depressa. A chave está no sítio do costume. Se não me encontrares é porque saí para comprar uma agenda.

 











sábado, 11 de maio de 2013

O meu avô e a reforma agrária



A genética maravilha-me. Não que eu seja uma cientista, ou uma grande entendida na mecânica da coisa. Mas sou uma pessoa observadora, pelo menos no que toca às pessoas, e reconheço em mim, traços que claramente herdei. E mais do que os traços fisionómicos, são as heranças psicológicas, os traços de personalidade e carácter, que me deixam deslumbrada, todas as vezes que penso na complexa perfeição da Natureza e da existência.

Quando recordo o meu avô Francisco, automaticamente lembro-me de como era amigável, de riso fácil, da sua ligação com os animais. E esta magia da genética, faz com que eu reconheça esses mesmos traços no meu pai e, por sorte, em mim também.

Há uma linguagem secreta, própria, em todas as famílias. Eu e o meu pai apreciamos muito os nossos diálogos, conversas que giram há volta de política, de economia, de senso comum. São os nossos momentos, em que nos revemos um no outro. Estreita ligação entre pai e filha, comunhão de carne, sangue e mente.

Há tempos, num desses episódios, o meu contou-me um episódio com o meu avô, que me comoveu imensamente, e me encheu de orgulho.

Após o 25 Abril, não tardou muito que a Reforma Agrária também chegasse à terra dos meus avós paternos.
Embora na teoria o propósito deste movimento fosse inspirado num nobre ideal de justiça e igualdade, visto que o grande objectivo era libertar os trabalhadores do campo de um cenário de feudalismo impróprio para a condição humana, outorgando-lhes alguma constância e estabilidade. Para acabar com a miséria, com a fome, com a exploração.
A verdade é que tudo o que existe pela mão do Homem será, inevitavelmente, tão imperfeito quanto a nossa condição humana. Sem excepções.
Andaria o meu avô Francisco nos seus cinquentas, cinquenta e picos, quando a reforma agrária chegou a Vila de Frades.
Vila linda do concelho da Vidigueira. Vila de Vasco da Gama e de Fialho de Almeida, dos meus avós, do meu pai, depositário de valiosas memórias de infância...


Em nome do movimento vieram pessoas de Lisboa que levantavam os punhos gritando palavras de ordem. Tinham vindo para ensinar Abril às gentes do interior, para ocupar latifúndios, para organizar uma massa de gente em cooperativas agrícolas.
Tinham vindo também eles para trabalhar nos campos, sem saber nem procurar saber nada do que a terra exige. Agiam arrogantemente, como se não houvesse nada que saber. E as searas empobreciam, e os animais perdiam peso, porque somos nós que temos que respeitar os horários da Natureza, e não esta que se curva a um horário de escritório.

E se durante a ditadura havia censura, Abril não foi assim tão diferente.
Ai de quem verbalizasse uma crítica, ai do incauto e atrevido "infiel" - aliás, acho que só agora, passados quase 40 anos, (que os cabeças de cartaz dos anos 70 hão-de bater as botas mais dia menos dia), é que nos sentimos à vontade para apontar os erros não olhando a quem ou a quê, sem sermos marginalizados ou apontados de fascistas ou comunistas.

Nas mãos daquela gente, o gado era levado aos pastos durante as horas de calor. Como resultado, os animais não comiam. Foi o meu avô, homem do campo em toda a sua nobreza, que salvou todos aqueles animais, agora pele e osso, de uma morte certa à fome e à sede, retornando-os aos pastos pelas regras da Natureza.

Contou-me o meu pai, que o senhor meu avô, passou à porta de uma das reuniões do comité da reforma agrária, e gritou-lhes a plenos pulmões - "malandros!". Que quem ama a terra e os animais não se deixa ficar mudo nem quieto.
Contou-me o pai, hoje com mais quarenta anos em cima mas com uma indignação parada no tempo, que isso valeu ao meu avô uma retribuição violenta, sem qualquer respeito pela sua idade. Rematou com um incomensurável orgulho, que eles sendo muitos e mais novos, o meu avô Francisco ainda deu luta e retalhou a perna a um, com a sua navalha.

E nesse instante, lembrei-me de mim mesma, que aos 8 anos defendi um rafeiro, colocando-me entre ele e uma turba de miúdos de pedras na mão. E aos 33, percebo que o meu avô não morreu, vive em nós nos traços que partilhamos, através da magia da genética, no adn da alma.








quinta-feira, 9 de maio de 2013

O choque eléctrico


Hoje o meu dia começou mais cedo que o costume. Quando tocou o primeiro alarme do telemóvel em jeito de despertador, já eu estava à espera que me atendessem numa sucursal da Edp.

Parti de casa bem cedinho, com uma pasta onde levava facturas actuais, antigas, alguns documentos, um bloco de notas e até uma calculadora. Porque quando vou à guerra gosto de ir preparada.

É que ontem, ao olhar para a factura da electricidade ia-nos dando a travadinha. Primeiro, a sensação de incredulidade que se tem ao olhar para o valor cobrado, uma exorbitância!
O verdadeiro choque eléctrico fez-se sentir após uma minuciosa análise da factura - uma das parcelas, referente a um período de somente cinco dias, acusava um consumo energético superior ao que gastamos em dois meses!


Em minutos, passámos de atónitos a pensativos - mas que raio andámos a fazer nessa semana?!
E a conclusão foi, nada. Nada de diferente, nada que justificasse algo assim.
É que para consumir aquelas centenas de kilowatts em cinco dias teria que se ter passado algo de extraordinário por aqui - no mínimo uma rave com um grandioso espectáculo de luz e som e, não posso dizer que tal tenha ocorrido.

A seguir, vem a indignação. Sim, porque somos daquelas pessoas que teimam em cultivar, na medida do possível, (que isto é uma casa de família e não um mosteiro franciscano), a nossa versão de equilíbrio entre conforto e consciência económica e ambiental.

Sempre tivemos a preocupação de escolher electrodomésticos com uma elevada eficiência energética, usamos lâmpadas economizadoras, temos os equipamentos ligados a tomadas múltiplas com botão de corte de corrente, e todas as noites, temos o cuidado de as desligar para evitar os consumos escondidos dos aparelhos. Não temos equipamento de ar condicionado, e só recorremos a aquecedores ou ventoínhas quando se torna desagradável não o fazer, sempre que possível lavo a roupa a 40º, e não tenho feitio para ocupar serões a passar a ferro. Não temos o hábito de ter tudo ligado ao mesmo tempo - ou está a ser usado, ou então, desliga-se.
Temos todos estes cuidados, e ainda outros, e é natural que nos indigne receber uma factura assim.

Fomos logo comparar com o valor do contador e lá estavam, todos aqueles watts como consumidos. O que não pode mesmo ser!
Encontrei através do google, várias queixas sobre contadores traidores, inimigos da sua família, que por defeito originavam facturas astronómicas. Com a simples troca de contador, várias pessoas viram a sua conta da luz passar para menos de metade, sem qualquer restrição da sua parte no uso dos equipamentos da sua casa.

Desde ontem à noite que andamos lunáticos em volta do contador. Hoje já fui espreitá-lo uma meia dúzia de vezes, a ver se o apanho com a boca na botija.
Na realidade, ontem fizemos um teste. Entre a hora do jantar e hoje de manhã, intervalo em que agimos de forma exactamente igual a todas as outras noites, gastámos 2 kw. Experiência que comuniquei à comercial que me atendeu.
Pois é, se numa noite normal gastamos 2kw, expliquem-me então como se justifica um dispêndio de sessenta vezes mais.

Ficou o diagnóstico do contador marcado para amanhã. A ver vamos o que isto vai dar...



quinta-feira, 2 de maio de 2013

Quando a esmola é muita...



Esta história que aqui partilho é verídica. Terá certamente a utilidade de servir de aviso, provavelmente aos que agora são mais novos e incautos, para que saibam que alguma desconfiança é benéfica. Que a sabedoria dos antigos adágios continua a prevalecer verdadeira - neste caso, aplica-se que "quando a esmola é muita, o cego desconfia".

Estávamos em 2004. Faltavam meses para concluir a minha licenciatura. Dizer que andava exausta, tanto física como psicologicamente, era pouco. Para além de todos os trabalhos, exames e coisas próprias da vida de estudante, a ideia de conseguir trabalho dentro da minha especialidade parecia cada vez mais distante e inatingível.
Trabalhava para uma pequena empresa, a troco do ordenado mínimo e a recibos verdes. A grande vantagem é que tinha conseguido negociar um horário suficientemente flexível para conciliar com as aulas. Mas era algo provisório e, estava muito longe de se assemelhar ao sonho de trabalhar numa das grandes agências de publicidade como copy.
As mesmas grandes agências que eu sondava há anos, sem qualquer resultado tangível e promissor.

Um dia recebo uma chamada inesperada. Era o meu amigo F. que estava também a concluir o mesmo curso que eu, mas noutra universidade. Trazia uma grande novidade - sabia de uma possível oportunidade de emprego na nossa área, com condições bem acima da média, e não me quis deixar de fora.
A universidade dele tinha sido contactada pelo recrutador de uma nova empresa. A turma do F. iria estar em peso nas entrevistas. Fiquei grata pelo contacto. É algo demolidor ver o entusiasmo natural que se tem ao concluir um curso, esmagado pela incerteza e pela ideia de sair da universidade directamente para o desemprego.

Ainda pelo telefone, o F. indicou-me que o primeiro passo seria encontrarmo-nos com o tal recrutador algures no piso da restauração dos Armazéns do Chiado, no dia e hora X.

Achei estranho, mas segui as indicações à letra. Esperei sozinha numa mesa, enquanto sondava todos em meu redor. Numa mesa mais afastada, num intervalo sistemático de alguns minutos, havia quem se levantasse, dando lugar a um novo interlocutor. Não era preciso ser o Sherlock Holmes para adivinhar que se tratava do indivíduo que me entrevistaria e de alguns dos candidatos.

Chegada a minha vez, dirigi-me à mesa. A conversa foi breve. Falámos de publicidade e trocámos contactos. Disse-me que se recebesse uma mensagem com os detalhes para uma nova reunião, então significaria que tinha passado, com sucesso, a primeira fase da entrevista. Achei estranho o meu entrevistador ser tão jovem, a localização e a brevidade desta primeira entrevista.

Eu e o F. trocámos uma imensidão de mensagens e telefonemas durante os dias seguintes. Estávamos expectantes e foi um alívio quando ambos recebemos a tão esperada mensagem, com os pormenores da segunda fase da entrevista.
O F. deu-me boleia até ao Rato. Éramos dezenas a ocupar o mesmo ponto de encontro. O tal indivíduo, o jovem madeirense, chegou a pé e guiou-nos até um espaço que de momento era um parque de estacionamento subterrâneo, mas que segundo o seu discurso, após uma reestruturação monumental seria a sede da empresa, o nosso futuro local de trabalho.
Falou em salários que rondavam os 2000 ou 3000 dólares, em gabinetes privados com casa de banho privativa, em fardas Xpto desenhadas pela Fátima Lopes com jóias a condizer para "fazer bonito" nas reuniões, em sistemas informáticos high tech.
E o meu grilinho - chamem-lhe intuição, bom senso, o que quiserem - cantava cada vez mais alto nos bastidores da minha mente. E todas aquelas dezenas de jovens como eu, eufóricos com esta oportunidade de sonho, e eu à parte, desconfiada e a sentir-me a maior das cínicas, porque não sabia dar valor à sorte quando esta me batia à porta.

Falou da obrigatoriedade de viajar, em especial para os Estados Unidos, durante períodos que chegariam a semanas a fio, que partilharíamos o quarto de hotel com a nossa equipa para poupar nos custos.
Mais material para o meu grilo roer. Bicho raro esse, pois toda a gente à minha volta parecia estar envolta num manto de entusiasmo.

Passaram algumas semanas até à última reunião. Esta no Estádio da Luz, num qualquer café que existe lá dentro.
Naquele dia a minha paciência não era muita, muito menos para os joguinhos psicológicos daquele gajo.
Hoje a estratégia era voltar a dividir os candidatos, a ter curtas conversas individuais. Topei-o.
Comentava com um pequeno grupo as minhas desconfianças, como me faziam falta mais detalhes, mais informação, tudo preto no branco, e quase que era fuzilada por um coro de "shhhhhh" , "tem cuidado, não queremos ficar sem emprego".

No nosso tête a tête, falou-me do quanto me queria na equipa, de como tínhamos que ser um grupo coeso, uma família e que para isso, era imprescindível que nos reuníssemos todos num retiro para criar laços. A minha expressão estava muito longe do entusiasmo cego que ele esperava - daquele que nos faz aceitar tudo com vigor. Na verdade, eu saltitava entre o modo "tirar-lhe as medidas" e o "raio fulminante". E isso apanhou-o de surpresa.

Depois da abordagem individual com todos os candidatos, comunicou ao grupo, numa imensa exaltação, que o destino do retiro seria o Brasil. E começa uma onda de histeria colectiva, para todos os lados, excepto o meu. De repente um momento de solenidade - haviam duas grandes condições: tínhamos que aceitar naquele exacto momento e, ou íamos todos, ou não ia nenhum.
O meu grilo neste momento era o instinto dos sete instrumentos e gritava a plenos pulmões.
"Com que então pressão colectiva, filho de uma grande p***" - pensei eu.
Na minha cabeça teciam-se esquemas de correios para tráfico de drogas, tráfico de orgãos ou escravatura. Já nos imaginava algures, indefesos, afastados da família, ou até mortos.
E aquele bando de idiotas a festejar! Seria a única a ver as inúmeras incongruências de tudo isto?!

Topámo-nos mutuamente, medimo-nos e ele avançou. Toda aquela gente à nossa volta, e ele a pressionar-me para aceitar as condições, todas elas.
Eu mantinha-me na minha - não tinha passado anos a tirar um curso para me pisgar para o Brasil, semanas antes da última época de exames, para ir beber caipirinhas com estranhos. É possível fazê-lo em Portugal - replicava eu.
Soltei a franga - que não cedia a pressões, que desconfiava daquilo tudo, e onde é que é a sede da empresa, que quando a esmola é muita o cego desconfia, e que se me obrigam a decidir no momento, a minha resposta será "não", sem volta a dar. Que me cheirava a caso de polícia. E que se fossem todos lixar!

Virei costas e fui-me embora.
Nunca mais vi a turma do F.
Nunca ninguém voltou a ouvir daquele indivíduo.
A mãe do F. de Angola telefonou para a minha mãe, e falaram demoradamente sobre o sucedido.
Ouvi dizer que tinham feito queixa na polícia. Ainda bem que ganharam juízo. Tenho a certeza que não era coisa boa, ao certo não sei dizer o quê, mas o meu grilo é de confiança e nunca me mente!






Coisas que me irritam #3



Um dia destes acompanhei uma amiga numa visita relâmpago a um dos muitos espaços de alma burocrática, onde desempregados e funcionários vivem para uma constante troca de palavras e papéis.
Um minúsculo espaço dividido entre sala de espera e dois guichets.
Meia dúzia de pessoas ocupavam dispersas as cadeiras de um laranja forte, à espera do momento que culminaria, inevitavelmente, na tal troca de palavras por papéis, e uma nova data para uma segunda e uma terceira, e uma enésima troca de papéis por palavras, de papéis por outros papéis.

E eu, que nada percebo destas trocas, fiquei de pé num canto, à espera da minha amiga, observando com discrição e minúcia. E o que vi, torna-me grata pela curta duração da minha estadia naquele cubículo.

Varri com o olhar as formas e as cores, a quase materialização do silêncio, não fora uma criança irrequieta e a sua mãe. Vi as pessoas, as suas faces, as suas mãos ocupadas com papéis, e nada disso me incomodou. Até que a vi. E tudo o resto passou para segundo plano.

Era uma mulher, nos seus vintes ou trintas, e passaria despercebida não fora o seu incómodo, silencioso mas palpável, em relação ao petiz irrequieto que lhe invadia o espaço pessoal.
Li-lhe a postura - abraçava a mala e os pertences, os cabelos longos serviam de esconderijo ao rosto e os olhos focavam um ponto de nenhures, fugindo de qualquer contacto.
E o fedelho, que saltitava e o diabo a sete na cadeira ali mesmo ao seu lado, demasiado próximo, demasiado incómodo, invasor do seu desejo de invisibilidade. E as suas costas que se iam curvando cada vez mais, a cada estridência do miúdo, que imaginei por momentos que esta mulher se iria transformar em tartaruga e recolher-se finalmente ao conforto do isolamento no interior da sua carapaça, ou que iria desaparecer de vez, absorvida pelo plástico laranja da cadeira.

Decidi não ver mais nada. Foquei toda a atenção na ponta dos meus sapatos.
Estava irritada. Tinha-se acendido o Vesúvio que mora na minha barriga e interiormente crispava-me, ardia, maldizia todas as coisas que nos pesam e nos fazem andar de costas curvadas, que nos roubam a vontade de sorrir, o brilho do olhar, e até o mínimo de confiança que nos permite dizer a um puto que se cale e se ponha quieto, se assim nos apetecer.

Mais do que irritada, estava frustada. Por ela. Por mim, por não ter qualquer poder para lhe pintar com cores felizes o semblante e a existência.





sexta-feira, 26 de abril de 2013

Lições da minha mãe #1



Quando eu tinha cerca de 15 anos a minha mãe aproveitou uma situação bizarra para me ensinar uma valiosa lição.

Uma tarde, encontrei-a rodeada de outras mães. Todas elas, os filhos e as filhas, nossos conhecidos, (variando somente o grau de proximidade), como não poderia deixar de acontecer no ambiente de aldeia onde cresci.

A conversa parecia animada. O assunto, como em qualquer grupo de mães, eram os filhos.

Mas, devo confessar que nada a que já tivesse assistido me poderia preparar para aquela cena. Ainda hoje, que conto com mais do dobro daquela idade, ao relembrar aquele episódio, há uma aura de insólito que ainda não se desvaneceu.

Todas as mães elogiavam os filhos. A minha mãe mantinha-se calada, excepto para confirmar que sim, que filha de D. Fulana era boa rapariga ou, que filho de D. Sicrana era realmente muito educado.

- Ora bem, até este exacto momento nada ressalta como extraordinário, nem como merecedor de espaço na memória. Mas é assim que todos os enredos começam, subtil e despreocupadamente.

Em escassos minutos duas mães tornaram-se o centro das atenções. Duelavam entre si pela atenção dos ouvintes, numa troca cada vez mais enérgica de elogios à prole. Já ninguém anuía - simplesmente movíamos a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como no Estoril Open.
Sim, que estes não eram como os filhos dos "outros", eram excepcionais! Eram fruto do ventre daquelas Marias, concepção dos seus predicados, da sua perfeição.
Mais uns segundos e convenciam-me que tinha andado na escola com a reencarnação de Jesus. Qual quê! Mais uns segundos, e tinha o próprio Cristo que se pôr a pau, que havia ali competição à altura!

Mas para todo o clímax há um anticlímax. E neste enredo, foi personificado pela senhora minha mãe.
- Pois a minha filha é ... - e garantida a atenção do círculo do estrogénio - colocou, num par de frases, alguns dos meus defeitos a nu, despediu-se e seguimos caminho.
Alguns metros adiante, onde já ninguém nos podia ouvir, ainda meio boquiaberta meio embaraçada, reclamei - Não me digas que não te lembraste de nada simpático para dizer sobre mim!

- Disse alguma mentira? - replicou a minha mãe. - Não disse...

Mesmo assim imaginava incomodada as conversas prováveis dessa noite - Ó Fulano, sabias que a filha de X é isto e aquilo. A sério! Foi a própria mãe que disse! Vê lá tu!
Esse incómodo foi rapidamente substituído pelo orgulho de ter uma mãe que diz o que pensa - doa a quem doer.
Outra vantagem é que nunca tive medo que os meus pais me trocassem por camelos se fossemos a Marrocos.



Lição nº1 - Se te sentes incomodado com a constatação dos teus defeitos, cabe-te a ti mudar, não os outros mentirem sobre ti.

Lição nº2 - Gostar verdadeiramente de alguém é conhecer-lhe e aceitar-lhe virtudes e defeitos.

Lição nº3 - Valorizar algo ou alguém não depende da aprovação em praça pública.






terça-feira, 23 de abril de 2013

Para a memória futura...


Quando eu morrer deixem-me ser uma árvore. Qual, ainda não me decidi - talvez um sobreiro.

Não me tranquem numa caixa, numa qualquer roupa domingueira. Não me condenem à claustrofobia das lápides, nem à lugubridade dos cemitérios.

Quando eu morrer deixem-me ser uma árvore. Há algo de apaziguador na ideia de ser sombra, refúgio e todas as coisas que as árvores são e os Homens ficam aquém.

Não me dêem cortejos, nem missas, nem lutos. Não me tragam velas e flores cortadas como obrigação em dias de finados.

Quando eu morrer deixem-me ser uma árvore. Deixem que a seiva dê lugar ao sangue. Para que possa cumprir em silêncio tudo aquilo que nunca soube dizer.


(imagem de sobreiro - Quercus Suber -  retirada do site da Associação Transumância e Natureza)

domingo, 21 de abril de 2013

Para que realmente servem os smartphones...


Basicamente servem para nos entreter quando estamos há meia hora à espera que o empregado de mesa chegue com o nosso pedido.

Tenho algo a confessar - gosto de fast food. Pronto, está dito e recordado para a posteridade por aqui, perante quem se dê ao trabalho de o ler. Não é que o meu palato bata palmas e solte guinchinhos juvenis de excitação com aquilo que nos é servido. Mais do que a comida em si, gosto da rapidez com que é servida.
Em meia-hora, escolhi, comi, e já passei para o café e o cigarro.
Falta-me, muitas vezes, a paciência para o ritual de espera, da intrincada troca de cortesias entre quem atende e quem é atendido, dos intervalos infindáveis entre os vários actos da refeição. Entendo e aprecio os conceitos de slow food, de que o tempo é um ingrediente essencial quando queremos uma experiência plena à mesa.
Mas porra, por vezes não quero experiências, quero simplesmente comer. E dizer que não há lugar para tudo, seria abolir o sprint para enfatizar a maratona.

Hoje apeteceu-nos pizza.
Para mim as pizzarias, em especial destes franchises, são restaurantes de uma categoria intermédia. Ocupam o degrau imediatamente acima do fast food, longe de ser propriamente daqueles sítios onde se espera viver uma grande experiência gastronómica. Estão ligeiramente entre ambos e tal deveria revelar-se sobretudo no tempo dispendido numa refeição - um compasso a meio tempo.

 Passada meia-hora a empregada vem comunicar que a cozinha não dispõe de um dos ingredientes. Acordamos uma alternativa. Meia-hora para se darem conta?! Reviramos os olhos... Primeiro pedido de desculpa. Voltamos a atenção para o smartphone, e continuamos a leitura das notícias.
Sim, não fora este e muito provavelmente a reacção teria sido sair porta fora.
Dois segundos depois, aproxima-se o gerente com um segundo pedido de desculpas - a pizza já está no forno. Quando se afasta, reviro os olhos pela segunda vez. Respiro fundo - o que é que se passou mesmo na China? - fazendo por me abstrair.
Vem a pizza. Faltam as bebidas.
Passam mais umas três vezes pela mesa. Mais uns pedidos de desculpa, perguntam se a pizza está do nosso agrado.
Que pena não serem tão disponíveis quando realmente precisamos de atenção, de café, da conta.