quinta-feira, 2 de maio de 2013
Quando a esmola é muita...
Esta história que aqui partilho é verídica. Terá certamente a utilidade de servir de aviso, provavelmente aos que agora são mais novos e incautos, para que saibam que alguma desconfiança é benéfica. Que a sabedoria dos antigos adágios continua a prevalecer verdadeira - neste caso, aplica-se que "quando a esmola é muita, o cego desconfia".
Estávamos em 2004. Faltavam meses para concluir a minha licenciatura. Dizer que andava exausta, tanto física como psicologicamente, era pouco. Para além de todos os trabalhos, exames e coisas próprias da vida de estudante, a ideia de conseguir trabalho dentro da minha especialidade parecia cada vez mais distante e inatingível.
Trabalhava para uma pequena empresa, a troco do ordenado mínimo e a recibos verdes. A grande vantagem é que tinha conseguido negociar um horário suficientemente flexível para conciliar com as aulas. Mas era algo provisório e, estava muito longe de se assemelhar ao sonho de trabalhar numa das grandes agências de publicidade como copy.
As mesmas grandes agências que eu sondava há anos, sem qualquer resultado tangível e promissor.
Um dia recebo uma chamada inesperada. Era o meu amigo F. que estava também a concluir o mesmo curso que eu, mas noutra universidade. Trazia uma grande novidade - sabia de uma possível oportunidade de emprego na nossa área, com condições bem acima da média, e não me quis deixar de fora.
A universidade dele tinha sido contactada pelo recrutador de uma nova empresa. A turma do F. iria estar em peso nas entrevistas. Fiquei grata pelo contacto. É algo demolidor ver o entusiasmo natural que se tem ao concluir um curso, esmagado pela incerteza e pela ideia de sair da universidade directamente para o desemprego.
Ainda pelo telefone, o F. indicou-me que o primeiro passo seria encontrarmo-nos com o tal recrutador algures no piso da restauração dos Armazéns do Chiado, no dia e hora X.
Achei estranho, mas segui as indicações à letra. Esperei sozinha numa mesa, enquanto sondava todos em meu redor. Numa mesa mais afastada, num intervalo sistemático de alguns minutos, havia quem se levantasse, dando lugar a um novo interlocutor. Não era preciso ser o Sherlock Holmes para adivinhar que se tratava do indivíduo que me entrevistaria e de alguns dos candidatos.
Chegada a minha vez, dirigi-me à mesa. A conversa foi breve. Falámos de publicidade e trocámos contactos. Disse-me que se recebesse uma mensagem com os detalhes para uma nova reunião, então significaria que tinha passado, com sucesso, a primeira fase da entrevista. Achei estranho o meu entrevistador ser tão jovem, a localização e a brevidade desta primeira entrevista.
Eu e o F. trocámos uma imensidão de mensagens e telefonemas durante os dias seguintes. Estávamos expectantes e foi um alívio quando ambos recebemos a tão esperada mensagem, com os pormenores da segunda fase da entrevista.
O F. deu-me boleia até ao Rato. Éramos dezenas a ocupar o mesmo ponto de encontro. O tal indivíduo, o jovem madeirense, chegou a pé e guiou-nos até um espaço que de momento era um parque de estacionamento subterrâneo, mas que segundo o seu discurso, após uma reestruturação monumental seria a sede da empresa, o nosso futuro local de trabalho.
Falou em salários que rondavam os 2000 ou 3000 dólares, em gabinetes privados com casa de banho privativa, em fardas Xpto desenhadas pela Fátima Lopes com jóias a condizer para "fazer bonito" nas reuniões, em sistemas informáticos high tech.
E o meu grilinho - chamem-lhe intuição, bom senso, o que quiserem - cantava cada vez mais alto nos bastidores da minha mente. E todas aquelas dezenas de jovens como eu, eufóricos com esta oportunidade de sonho, e eu à parte, desconfiada e a sentir-me a maior das cínicas, porque não sabia dar valor à sorte quando esta me batia à porta.
Falou da obrigatoriedade de viajar, em especial para os Estados Unidos, durante períodos que chegariam a semanas a fio, que partilharíamos o quarto de hotel com a nossa equipa para poupar nos custos.
Mais material para o meu grilo roer. Bicho raro esse, pois toda a gente à minha volta parecia estar envolta num manto de entusiasmo.
Passaram algumas semanas até à última reunião. Esta no Estádio da Luz, num qualquer café que existe lá dentro.
Naquele dia a minha paciência não era muita, muito menos para os joguinhos psicológicos daquele gajo.
Hoje a estratégia era voltar a dividir os candidatos, a ter curtas conversas individuais. Topei-o.
Comentava com um pequeno grupo as minhas desconfianças, como me faziam falta mais detalhes, mais informação, tudo preto no branco, e quase que era fuzilada por um coro de "shhhhhh" , "tem cuidado, não queremos ficar sem emprego".
No nosso tête a tête, falou-me do quanto me queria na equipa, de como tínhamos que ser um grupo coeso, uma família e que para isso, era imprescindível que nos reuníssemos todos num retiro para criar laços. A minha expressão estava muito longe do entusiasmo cego que ele esperava - daquele que nos faz aceitar tudo com vigor. Na verdade, eu saltitava entre o modo "tirar-lhe as medidas" e o "raio fulminante". E isso apanhou-o de surpresa.
Depois da abordagem individual com todos os candidatos, comunicou ao grupo, numa imensa exaltação, que o destino do retiro seria o Brasil. E começa uma onda de histeria colectiva, para todos os lados, excepto o meu. De repente um momento de solenidade - haviam duas grandes condições: tínhamos que aceitar naquele exacto momento e, ou íamos todos, ou não ia nenhum.
O meu grilo neste momento era o instinto dos sete instrumentos e gritava a plenos pulmões.
"Com que então pressão colectiva, filho de uma grande p***" - pensei eu.
Na minha cabeça teciam-se esquemas de correios para tráfico de drogas, tráfico de orgãos ou escravatura. Já nos imaginava algures, indefesos, afastados da família, ou até mortos.
E aquele bando de idiotas a festejar! Seria a única a ver as inúmeras incongruências de tudo isto?!
Topámo-nos mutuamente, medimo-nos e ele avançou. Toda aquela gente à nossa volta, e ele a pressionar-me para aceitar as condições, todas elas.
Eu mantinha-me na minha - não tinha passado anos a tirar um curso para me pisgar para o Brasil, semanas antes da última época de exames, para ir beber caipirinhas com estranhos. É possível fazê-lo em Portugal - replicava eu.
Soltei a franga - que não cedia a pressões, que desconfiava daquilo tudo, e onde é que é a sede da empresa, que quando a esmola é muita o cego desconfia, e que se me obrigam a decidir no momento, a minha resposta será "não", sem volta a dar. Que me cheirava a caso de polícia. E que se fossem todos lixar!
Virei costas e fui-me embora.
Nunca mais vi a turma do F.
Nunca ninguém voltou a ouvir daquele indivíduo.
A mãe do F. de Angola telefonou para a minha mãe, e falaram demoradamente sobre o sucedido.
Ouvi dizer que tinham feito queixa na polícia. Ainda bem que ganharam juízo. Tenho a certeza que não era coisa boa, ao certo não sei dizer o quê, mas o meu grilo é de confiança e nunca me mente!
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