sábado, 11 de maio de 2013

O meu avô e a reforma agrária



A genética maravilha-me. Não que eu seja uma cientista, ou uma grande entendida na mecânica da coisa. Mas sou uma pessoa observadora, pelo menos no que toca às pessoas, e reconheço em mim, traços que claramente herdei. E mais do que os traços fisionómicos, são as heranças psicológicas, os traços de personalidade e carácter, que me deixam deslumbrada, todas as vezes que penso na complexa perfeição da Natureza e da existência.

Quando recordo o meu avô Francisco, automaticamente lembro-me de como era amigável, de riso fácil, da sua ligação com os animais. E esta magia da genética, faz com que eu reconheça esses mesmos traços no meu pai e, por sorte, em mim também.

Há uma linguagem secreta, própria, em todas as famílias. Eu e o meu pai apreciamos muito os nossos diálogos, conversas que giram há volta de política, de economia, de senso comum. São os nossos momentos, em que nos revemos um no outro. Estreita ligação entre pai e filha, comunhão de carne, sangue e mente.

Há tempos, num desses episódios, o meu contou-me um episódio com o meu avô, que me comoveu imensamente, e me encheu de orgulho.

Após o 25 Abril, não tardou muito que a Reforma Agrária também chegasse à terra dos meus avós paternos.
Embora na teoria o propósito deste movimento fosse inspirado num nobre ideal de justiça e igualdade, visto que o grande objectivo era libertar os trabalhadores do campo de um cenário de feudalismo impróprio para a condição humana, outorgando-lhes alguma constância e estabilidade. Para acabar com a miséria, com a fome, com a exploração.
A verdade é que tudo o que existe pela mão do Homem será, inevitavelmente, tão imperfeito quanto a nossa condição humana. Sem excepções.
Andaria o meu avô Francisco nos seus cinquentas, cinquenta e picos, quando a reforma agrária chegou a Vila de Frades.
Vila linda do concelho da Vidigueira. Vila de Vasco da Gama e de Fialho de Almeida, dos meus avós, do meu pai, depositário de valiosas memórias de infância...


Em nome do movimento vieram pessoas de Lisboa que levantavam os punhos gritando palavras de ordem. Tinham vindo para ensinar Abril às gentes do interior, para ocupar latifúndios, para organizar uma massa de gente em cooperativas agrícolas.
Tinham vindo também eles para trabalhar nos campos, sem saber nem procurar saber nada do que a terra exige. Agiam arrogantemente, como se não houvesse nada que saber. E as searas empobreciam, e os animais perdiam peso, porque somos nós que temos que respeitar os horários da Natureza, e não esta que se curva a um horário de escritório.

E se durante a ditadura havia censura, Abril não foi assim tão diferente.
Ai de quem verbalizasse uma crítica, ai do incauto e atrevido "infiel" - aliás, acho que só agora, passados quase 40 anos, (que os cabeças de cartaz dos anos 70 hão-de bater as botas mais dia menos dia), é que nos sentimos à vontade para apontar os erros não olhando a quem ou a quê, sem sermos marginalizados ou apontados de fascistas ou comunistas.

Nas mãos daquela gente, o gado era levado aos pastos durante as horas de calor. Como resultado, os animais não comiam. Foi o meu avô, homem do campo em toda a sua nobreza, que salvou todos aqueles animais, agora pele e osso, de uma morte certa à fome e à sede, retornando-os aos pastos pelas regras da Natureza.

Contou-me o meu pai, que o senhor meu avô, passou à porta de uma das reuniões do comité da reforma agrária, e gritou-lhes a plenos pulmões - "malandros!". Que quem ama a terra e os animais não se deixa ficar mudo nem quieto.
Contou-me o pai, hoje com mais quarenta anos em cima mas com uma indignação parada no tempo, que isso valeu ao meu avô uma retribuição violenta, sem qualquer respeito pela sua idade. Rematou com um incomensurável orgulho, que eles sendo muitos e mais novos, o meu avô Francisco ainda deu luta e retalhou a perna a um, com a sua navalha.

E nesse instante, lembrei-me de mim mesma, que aos 8 anos defendi um rafeiro, colocando-me entre ele e uma turba de miúdos de pedras na mão. E aos 33, percebo que o meu avô não morreu, vive em nós nos traços que partilhamos, através da magia da genética, no adn da alma.








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