Estes últimos 2-3 anos têm sido, (qual o melhor termo?), algo "desafiantes" em termos de saúde.
Caso para dizer que não mata, mas mói. Mesmo com toda a positividade que me é inata.
Digamos que ainda ontem estava a ver um episódio de "72 dangerous places to live", que não é mais um top de locais em redor do globo largamente afectados por cheias, tornados, poluição, terramotos e todo e qualquer cataclismo que vos ocorra.
Estranhamente são lugares muito populares entre turistas em busca de adrenalina, que acham que correr riscos vale a pena para assar marshmallows em rios de lava ou passear por Chernobyl, e dei por mim a pensar "Que gente mais estúpida! Dar tão pouco valor à própria vida quase que é gozar com quem está doente!".
Para ajudar à festa, no início da semana passada comecei a sentir algumas tonturas. Nada de especial.
Vamos ser razoáveis - pensei eu - e dar uns dias a ver se isto passa, que não estou preparada para me tornar uma coninhas hipocondríaca que consulta um médico por tudo e por nada.
Já basta quando tal é inevitável. Se há coisa que me causa profundo desconforto é ir a centros de saúde, hospitais e afins e começar a pensar no universo de germes, vírus e bactérias que por lá vivem, para além dos tempos de espera, e da minha fobia de agulhas e outras ferramentas do ofício.
Chegou quinta-feira e as tonturas deram lugar a um episódio de vertigens tão dramático como nunca havia experimentado.
Depois de passar toda a manhã a tentar levantar-me sem sucesso, com a cabeça a rodar vertiginosamente em cada movimento por mais ligeiro que fosse, a única solução que me ocorreu foi telefonar para o meu marido a pedir que me chamasse um médico ao domicílio, já que nem conseguia ler a lista de contactos para ser eu própria a fazê-lo.
Em menos de nada comecei a ouvir o barulho de uma sirene a aproximar-se, e pouco depois estava acompanhada pelo meu marido e dois técnicos do INEM, de pijama, em jejum, sem sequer ter conseguido ir ao wc, a vomitar para dentro de um balde que me trouxeram após terem-me ajudado a sentar e eu ter tido o reflexo imediato de tapar a boca. Faziam-me perguntas, picavam-me o dedo, mediam-me a tensão, iam falando sempre num tom bastante sereno e tranquilizador, enquanto o meu marido me calçava meias, ténis, me vestia um casaco, lhes passava o meu cartão do cidadão...
Eu que não estou habituada a estas coisas, perguntava pelos meus óculos, lenços de papel para me limpar, indicava que queria outros ténis que não aqueles, que queria levar comigo o saco com todas as análises e exames que fiz nos últimos meses, queixava-me de ter que sair de casa naquelas figuras, (embora mais tarde tenha chegado à conclusão que não há melhor roupa que um confortável pijama e um casaco quentinho se tiverem que passar horas a fio numa maca, podem acreditar em mim). Tudo isto entremeado com mil e quinhentos "obrigadas" e "desculpem lá".
À entrada da ambulância comecei a hiperventilar: ocorreu-me que não gosto mesmo nada de hospitais, nem de picas nem nada dessas coisas.
Lembro-me de repetir uma meia dúzia de vezes ao meu marido, que assomava pela porta da viatura, quase tão pálido quanto eu: "Eu fico bem, cuida do cão."
Embora durante uma boa parte da experiência não tenha tido uma correcta noção do tempo devido ao mal estar, tive a sensação que chegámos ao destino num ápice, especialmente porque quando comecei a vomitar para dentro do saco que me deram, ligaram as sirenes e senti que íamos muito mais rápido, o que por instantes me pregou um cagaço, porque uma pessoa não é de ferro e dá por si a pensar "Ai, "Jasus"! O que é que eles pensam que eu tenho?! Mau!!!"
Voltei a vomitar na entrada para a triagem, que as macas abanam mesmo muito. Não deixa de ter alguma comicidade, (ou talvez não tenha, eu é que a procuro insistentemente porque o sentido de humor é o meu mecanismo de eleição), a situação em que o médico me vai questionando sobre o meu nome, os meus sintomas, e são os técnicos do INEM a responder por mim, porque naquele momento estava numa relação de grande proximidade com o saquinho de enjôo, ou quando me quiseram passar para uma segunda maca e eu ainda demorei um minutinho a perceber que eu é que tinha fazer esse movimento.
Se apreciarem tanto como eu este tipo de comédia iriam achar hilariante as minhas figuras durante os episódios em que me enfiaram agulhas e cateteres, - eu não estava a brincar quando disse que tinha fobia a essas coisas, (então quando tive que refazer a análise para reconfirmar os valores de potássio para me darem alta foi de gritos)!
E a dança contemporânea/ contorcionismo que fiz num dos wc do hospital para urinar dentro do copinho sem tocar em nada?!
Pouco depois de ter dado entrada, o meu marido encontrou-me deitada na maca, num corredor onde macas ocupadas por pacientes faziam fila e os acompanhantes tinham que se encostar o mais possível para dar passagem a todo o tráfego hospitalar, tapada com um lençol, a mão esquerda a agarrar o saco do enjôo, não fosse ainda precisar dele; a mão direita a segurar o cartão do cidadão, o telemóvel, guardanapos, e o saco com os exames que trazia comigo em cima das pernas, por debaixo do lençol.
Aprendi que a minha capacidade de fechar os olhos, abstrair-me e até dormitar em quase qualquer lugar é um dom maravilhoso, que me foi tremendamente útil durante as primeiras 3 horas, em que não fiz nada senão estar deitada na maca à espera. Uma habilidade tão útil quanto a capacidade de rir com tudo.
Das 14h30 às 15h30 há o período de troca de turnos, em que os acompanhantes ficam proibidos de passar para além da sala de espera, e só os doentes podem permanecer junto da área de enfermagem.
Insisti com o meu marido que durante essa altura fosse para casa, afinal que lógica tinha ele ficar afastado de mim e continuar a respirar "ar de hospital"?!
Durante essa hora a azáfama é algo diferente: há médicos e enfermeiros que passam por nós já sem bata, pois acabaram o seu turno, e caras novas que passam em sentido contrário. Enfermeiras aos pares que conversam entre si, passando informações sobre os doentes. Um grupo de pessoas de bata branca e estetoscópios no bolso ou ao pescoço que passam por todas as macas enquanto um lê para o grupo a informação sobre cada paciente, auxiliares que trocam sacos de lixo.
Mais ou menos por essa altura tive um pico de impaciência: estava em jejum, tinha sede e vontade de ir ao wc, já que a última vez tinha sido em casa, antes de ir dormir na noite anterior. Tinha alertado a duas ou três pessoas, das muitas que passaram por mim, que precisava de beber água e em breve precisaria de ajuda para ir ao lavabo, sem efeito, o que me fez sentir ignorada e irritada.
Duas macas à frente da minha estava uma senhora que também pediu para ir ao wc. Na resposta que lhe deram discerni os termos arrastadeira e fralda, e decidi que afinal não estava assim tão aflitinha e que podia muito bem aguentar.
A irritabilidade também diminuiu consideravelmente quando se aproximou a simpática senhora com o carrinho da alimentação que me deu um chá açucarado e um pacotinho de bolachas.
Deveriam ser 16h quando uma médica cruzou as portas da ala de enfermagem e chamou o meu nome. Acenei e respondi freneticamente,- "Aqui! Sou eu! Aqui, na maca!" - honestamente com um nadinha de medo que não desse por mim ali estacionada numa fila indiana de macas ao longo do corredor.
O meu marido ajudou-a a empurrar a maca para um gabinete de observação, um daqueles compartimentos delimitados por cortinas.
Leu os exames e análises que levei comigo, fez as questões da praxe quanto aos sintomas, a outros problemas de saúde e medicação, e perguntou-me se já havia tido síndrome vertiginoso.
Ora bem, já, mas há quase vinte anos! Tanto que na altura custou-me um chumbo ao exame de Auditoria de Marketing, e consequentemente à cadeira.
Pelo que me disseram, esta coisa filha da mãe, a partir do momento que ocorre uma vez, é certinho garantido que voltará mais vezes para chatear.
Explicou-me que os vómitos haviam sido fundamentais para poder assumir que era síndrome vertiginoso. A certeza era suficiente para tomar algo imediatamente, mas que se iriam fazer análises à mesma.
Mais tarde, quando já estava sentada num cadeirão na sala de tratamentos, rodeada maioritariamente por idosos, apercebi-me o quão os mais pequenos pedidos, como uma ida ao wc, são complicados naquele cenário: havia somente uma ou duas cadeiras de rodas disponíveis, claramente insuficientes. O processo de preparar cada uma daquelas pessoas para uma ida ao wc implica a chegada de uma enfermeira ou auxiliar que meta as botijas de ar a que a maioria daqueles doentes estavam ligados na cadeira, e que um acompanhante ou auxiliar estivessem disponíveis para os empurrar, já que o pessoal de enfermagem era claramente escasso e por isso essencial que continuassem a dar prioridade a outro tipo de tarefas.
Senti-me imensamente sortuda por naquele momento já ser capaz de andar, ainda que amparada pelo meu marido por uma questão de segurança, e capaz de usar os lavabos sem apoio, e ufa! sem fraldas nem arrastadeiras.
Um pouco antes das nove da noite estava a sair pelo meu próprio pé, mil vezes melhor do que entrei, na companhia do meu marido, aquele que digo há anos, e com toda a razão, que é o melhor do mundo.
No caminho para casa passámos pela farmácia de serviço, e por aquela altura já não me fazia impressão nenhuma andar em público em pijama polar às estrelinhas, ténis e kispo cor-de-rosa.
Só no dia seguinte é que contei aos meus pais do sucedido. É claro que levei um raspanete por isso, mas não gosto de os ver aflitos e preocupados. Talvez eu seja demasiado pragmática, mas havia decidido que só em caso de ter que ficar lá internada é que os avisaria, caso contrário que bem traria a algum de nós coloca-los num estado de nervos e ansiedade?!
As oito horas que estive no hospital permitiram-me observar muita coisa.
Sim, vi sistemas informáticos a crasharem e a colocaram os médicos numa pausa forçada, impedidos de ver resultados de análises, de iniciar ou terminar consultas, de passarem receitas; vi escassez de macas, de cadeiras de rodas, de lugares sentados na sala de tratamentos, de pessoal, vi casas de banho imundas, vi pessoas a desesperarem com os tempos de espera, com as dúvidas, com a fraca qualidade do sistema de chamadas de pacientes, cujo som era tão fanhoso que ninguém conseguia discernir o que era dito, vi máquinas que mal funcionavam, vi salas de espera a transbordar de gente e todos os buraquinhos ocupados por macas, como num tetris humano.
Mas, apesar de tudo isso e acima de tudo vi pessoas e as suas qualidades: vi dois bombeiros que tudo fizeram para ajudar a sua paciente e não a perderam de vista um segundo, vi uma médica que ficou mais meia-hora só para receber as minhas análises e dar-me a tão desejada alta, vi técnicos de laboratório que deram o seu melhor para refazer análises em tempo recorde, vi enfermeiras que se mantém serenas e tentam chegar a tudo e todos, mesmo com dez pessoas a rodeá-las, sedentas de atenção, em todos os momentos; que tratam os pacientes por "queridos", nos perguntam se estamos bem, e nos dizem coisas como "preocupe-se só em ficar bem" ou "se precisar de alguma coisa, chame", que nos cobrem com um lençol e nos perguntam se estamos bem assim depois de nos aconchegar; vi aquele que só pode ser o segurança mais simpático do mundo e arredores, e pessoas doentes e seus acompanhantes que precisando eles próprios de ajuda, estão sempre atentos aos seus semelhantes.
Saí de lá com a certeza que quando os meios materiais, as ferramentas disponíveis, atingirem o nível dos muitos exemplos de salutar humanismo que assisti, para comigo e para com outros, a saúde do SNS ficará irrepreensível.
Hoje mandei uma mensagem de agradecimento tanto ao Hospital, como ao INEM. Eu cá não esqueço quem me faz bem, e sinto que é nosso dever agradecer e assim motivar a quem tem como missão estar por nós, nas alturas em que estamos mais frágeis.
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