A história da Humanidade está repleta de conquistas, coisas grandes e pequenas, todas elas mais ou menos fundamentais, mais ou menos notadas, que vieram contribuir para a sobrevivência e evolução da nossa espécie.
Se de todos esses milhões de peças que vieram contribuir para o bem estar e desenvolvimento do Homem tivesse que eleger uma lista de dez favoritas, encontraria, sem pestanejar, um lugar de honra para o Ócio.
Há muito para dizer sobre o Ócio, mas começo por afirmar que a sua existência é a derradeira prova da vitória da nossa espécie sobre um manancial de sérias adversidades.
De vez em quando gosto de assistir a um dos muitos programas que existem sobre sobrevivência. Lembro-me de um em particular que me fez pensar como deveria ter sido difícil a vida para os humanos nos primórdios, e do milagre que é a sobrevivência, prosperidade e evolução da nossa espécie. O anfitrião do programa encontrava-se sozinho num qualquer local onde se sabe que existiram tribos há muito tempo atrás. Era um daqueles locais ermos onde a passagem do tempo não implica obrigatoriamente grandes mudanças ao cenário.
Todos os dias ele tinha que fazer uma escolha sobre o que era mais prioritário naquele momento: abrigo, calor, água ou alimento. A maior dificuldade consistia no facto da fonte de água potável se encontrar distante da fonte de alimento, assim como do local mais seguro para a construção de um abrigo, e por fim do local onde se encontrava material combustível para fazer fogo. Qualquer uma das viagens era essencial à sobrevivência, mas difícil tanto pela distância, como pelo dispêndio de energia e a influência do calor, frio e vento castigadores e inclementes.
Portanto, chegar a um estágio da nossa existência em que se vê ser possível dedicar tempo ao Ócio tanto na sua vertente contemplativa como de lazer é o mais claro indício de prosperidade. O momento em que se deixou simplesmente de sobreviver para passar a viver. Para mim, uma das maiores vitórias de todos os tempos.
Sobre o Ócio, diz Schopenhauer:
"O Verdadeiro Ócio
A verdadeira riqueza é apenas a riqueza interior da alma, tudo o resto traz mais problemas do que vantagens (Luciano). Alguém assim rico interiormente de nada precisa do mundo exterior a não ser um presente negativo, a saber, o ócio, para poder cultivar e desenvolver as suas capacidades espirituais e fruir a sua riqueza interior. Portanto, requer propriamente apenas a permissão para ser ele mesmo durante toda a sua vida, a cada dia e a cada hora. Se alguém estiver destinado a imprimir, em toda a raça humana, o traço do seu espírito, haverá para ele apenas uma felicidade e infelicidade, ou seja, a de poder aperfeiçoar as suas disposições e completar as suas obras - ou disso ser impedido. O resto é-lhe insignificante. Sendo assim, vemos os grandes espíritos de todos os tempos atribuírem o valor supremo ao ócio. Pois este vale tanto quanto o homem. A felicidade parece residir no ócio, diz Aristóteles, e Diógenes Laércio relata que Sócrates louva o ócio como a mais bela posse.
Também corresponde a isso o facto de Aristóteles declarar a vida filosófica como a mais feliz. De modo semelhante, diz na Política: "Poder exercer livremente as próprias aptidões, sejam elas quais forem, é a verdadeira felicidade", o que coincide com a sentença de Goethe em Wilhelm Meister Quem nasceu com um talento, para um talento, encontra no mesmo a sua mais bela existência. Todavia, possuir ócio é estranho não só à sorte comum, mas também à natureza comum do homem, pois o seu destino natural é o de empregar o seu tempo com a aquisição do necessário para a sua existência e a da sua família. Ele é um filho da necessidade, não uma inteligência livre. Em conformidade com isso, o ócio logo se torna um fardo para o homem comum, por fim um tormento, se ele não conseguir preenchê-lo com os fins artificiais e fictícios de toda a espécie, mediante o jogo, a distração e passatempos de todo o tipo. Pelos mesmos motivos, o ócio também lhe traz perigo, pois com acerto se diz difícil é a quietude no ócio. Por outro lado, um intelecto que exceda em muito a medida normal também é uma anomalia, portanto, inatural. No entanto, uma vez que existe, o homem que dele dispõe, para poder encontrar a sua felicidade, precisa justamente daquele ócio que, para os outros, ou é inoportuno, ou é pernicioso. Quanto a ele, sem o ócio, será um Pégasus sob o jugo e, portanto, infeliz. Mas se as duas anomalias se encontram, a exterior e a interior, então é um caso de grande felicidade. Pois aquele assim favorecido levará uma vida de tipo superior, a saber, a de quem está eximido das duas fontes opostas do sofrimento humano, a necessidade e o tédio, ou do laborar preocupado pela existência e a incapacidade de suportar o ócio (isto é, a própria existência livre), que são males dos quais o homem escapará apenas quando eles se neutralizarem e se suprimirem reciprocamente."
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
Também corresponde a isso o facto de Aristóteles declarar a vida filosófica como a mais feliz. De modo semelhante, diz na Política: "Poder exercer livremente as próprias aptidões, sejam elas quais forem, é a verdadeira felicidade", o que coincide com a sentença de Goethe em Wilhelm Meister Quem nasceu com um talento, para um talento, encontra no mesmo a sua mais bela existência. Todavia, possuir ócio é estranho não só à sorte comum, mas também à natureza comum do homem, pois o seu destino natural é o de empregar o seu tempo com a aquisição do necessário para a sua existência e a da sua família. Ele é um filho da necessidade, não uma inteligência livre. Em conformidade com isso, o ócio logo se torna um fardo para o homem comum, por fim um tormento, se ele não conseguir preenchê-lo com os fins artificiais e fictícios de toda a espécie, mediante o jogo, a distração e passatempos de todo o tipo. Pelos mesmos motivos, o ócio também lhe traz perigo, pois com acerto se diz difícil é a quietude no ócio. Por outro lado, um intelecto que exceda em muito a medida normal também é uma anomalia, portanto, inatural. No entanto, uma vez que existe, o homem que dele dispõe, para poder encontrar a sua felicidade, precisa justamente daquele ócio que, para os outros, ou é inoportuno, ou é pernicioso. Quanto a ele, sem o ócio, será um Pégasus sob o jugo e, portanto, infeliz. Mas se as duas anomalias se encontram, a exterior e a interior, então é um caso de grande felicidade. Pois aquele assim favorecido levará uma vida de tipo superior, a saber, a de quem está eximido das duas fontes opostas do sofrimento humano, a necessidade e o tédio, ou do laborar preocupado pela existência e a incapacidade de suportar o ócio (isto é, a própria existência livre), que são males dos quais o homem escapará apenas quando eles se neutralizarem e se suprimirem reciprocamente."
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
O Ócio divide-se em duas categorias: o Scholé e o Licere. O primeiro remete-nos aos grandes filósofos atenienses como Aristóteles, ao tempo passado na Ágora em contemplação e debate, exercícios que deram frutos ainda tão significativos na edificação das sociedades e do Homem de hoje. Por isso, Scholé, palavra grega para "lugar de ócio" deu origem ao termo escola.
A noção de Licere, do latim, tal como o nome indica remete-nos ao lazer, à folga e descanso.
Foi no liceu, numa aula de História, a primeira vez que ouvi falar dos filósofos da Antiga Grécia e dos seus lugares de ócio, do quanto este conceito era considerado sublime e essencial. Marcou-me. Quis que existissem máquinas de viajar no tempo para regressar a essa época e lugar. Achei que seria vida para mim. Que o passar do tempo não significa forçosamente evolução e ali estava a prova. A nossa sociedade não vive o Ócio, despreza-o, não o entende, confunde-o com preguiça mesmo quando ainda hoje saboreamos os seus frutos, e isso é um claro sinal de estupidificação e regressão.
Este mundo não é para muitos, inclusive para Pensadores. Ou nos curamos ou este mundo não será para ninguém.
Para mim também não é. Sempre me senti uma tartaruga num mundo lebre. Este ritmo não é o meu. O tempo foge e não há forma de o apanhar.
Voltámos a ser, embora com outras roupagens, o homem primitivo que não tem tempo de viver, pois anda no lufa-lufa da sobrevivência. Mas agora que somos animais com consciência, sabê-lo torna-lo mais difícil.
Urge abrandar o passo do mundo, apostar no slow-living, na calma, dar tempo ao tempo. Há que viver o Ócio, e ao contrário do que se passava na Grécia Antiga, democratizar este conceito, não haver apenas uma elite a poder disfrutar deste à custa de trabalho escravo.
Tal é possível: ao contrário do que nos querem fazer crer não há qualquer necessidade de qualquer um de nós trabalhar 40 horas semanais. Muitos dos empregos existentes são absolutamente insignificantes para a sobrevivência da espécie. Também não há falta de recursos. Estes apenas estão mal distribuídos.
Diminua-se a carga laboral para três dias semanais. Dois dias para a folga, em parte vulgarmente usada para o labor doméstico e familiar. E sobram dois dias em que o mundo se dividiria: um dia para viver o Ócio sem qualquer preocupação material, e o outro para servir as necessidades materiais daqueles que estariam a vivenciar o seu dia de Ócio.
E comecemos todos por vivenciar o Licere, exercício precioso de "dolce far niente" para limpar a mente, copo que transborda de tão cheio com tantos afazeres, compromissos, preocupações e mil pensamentos que nos poluem e tolhem a mente. Com o copo vazio poderemos semear a semente da Scholé, e ver que frutos surgirão.
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